Agora contando com um forte contingente de parlamentares de perfil conservador, o Congresso Nacional repõe em discussão a redução da maioridade penal. Transcrevemos abaixo um trabalho do advogado e mestrando em Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Hamilton Ferraz, originalmente publicado no site Justificando, que narra como, desde os primeiros colonizadores, o Brasil considerou a questão da maioridade penal.
Você conhece a história da idade penal no Brasil?
por Hamilton Ferraz
Tanto se falou e se fala a respeito de maioridade
penal (de forma mais aguda em momentos eleitorais, importa notar) que se
partirá do pressuposto de que o leitor já conhece se não todos, pelo menos uma
boa parte dos argumentos a favor ou contra sua redução[1]. Por isso, de maneira
sucinta, buscará aqui oferecer uma contextualização histórica ao debate,
reaquecido com a atual tramitação da PEC 171/93[2], que visa reduzir a
maioridade penal para 16 anos.
Lançando luz à nossa própria experiência penal
juvenil, cumpre ressaltar que já variamos muito nossas idades penais, sendo que
já nas Ordenações Filipinas de 1603, no Livro V, Título CXXXV previa-se certa
diferenciação em termos de pena para menores de 17 anos, e os entre 17 e 20
anos[3]. No Código Criminal do Império (1830) os menores de 14 anos eram
inimputáveis (art. 10), porém, caso se demonstrasse seu discernimento, seriam
imputáveis e recolhidos a Casas de Correção (art. 13); os maiores de 14 e
menores de 17 contavam com penas mais brandas (arts. 34 e 35) e os maiores de
17 e menores de 21, a seu turno, recebiam atenuação na pena em razão da idade
(art. 18, item 10). Não apenas as Casas de Correção mal saíram do papel[4],
como se convivia com a chamada “roda dos expostos”, sistema que chegou ao
Brasil por volta do século XVIII e que, destinado ao acolhimento de crianças
abandonadas pelos pais, representava na prática um grande infanticídio, com
enormes índices de mortalidade infantil[5].
Na República Velha, sob a égide do Código Penal de
1890, a imputabilidade penal foi reduzida para 9 anos de idade (art. 27, §1º);
entre 9 e 14 anos a imputabilidade ficava condicionada à presença do
discernimento, determinando-se o recolhimento a estabelecimentos disciplinares
industriais pelo tempo que o juiz achasse conveniente, desde que não
ultrapassasse 17 anos (art. 27, §2º c/c art. 30); entre 14 e 17 anos, o código
previa uma pena mais branda (art. 65), podendo já os maiores de 14 serem
recolhidos a estabelecimentos industriais até os 21 anos (art. 399, §2º); e os
maiores de 17 e menores de 21 faziam jus a uma atenuante (art. 65, §11). Esse
era um sistema que, na sagaz observação de Nilo Batista, tornava possível a
internação de uma pessoa dos 9 aos seus 21 anos[6]. Assim como as Casas de
Correção, os estabelecimentos industriais também não saíram do papel[7], embora
o tratamento tenha se especializado de forma tímida e precária no período,
ensaiando-se o encaminhamento desses jovens a institutos e estabelecimentos
diferenciados[8].
Em 1921, a Lei 4.242 dá novo tratamento à
imputabilidade penal, elevando a idade de responsabilização para 14 anos,
submetendo o maior de 14 e menor de 18 anos a processo especial e eliminando de
uma vez o critério do discernimento, alcunhado de “adivinhação psicológica” por
Evaristo de Morais[9] e criticado acidamente por Tobias Barreto[10]. De se
espantar que, passado quase um século desta discussão, volta-se a exumar este
critério da tumba jurídico-penal nas mãos de um ou outro parlamentar
comprometido com a eterna sede de segurança e tranquilidades públicas, nunca
plenamente saciadas, mas sempre politicamente úteis.
Em 1927, de modo a dar tratamento específico aos
jovens entre 14 e 18 anos, promulga-se o nosso primeiro Código de Menores, que
deve seu nascimento a todo um movimento de críticas cada vez mais severas, não
apenas quanto à mistura entre jovens e adultos, às insuficiências e
ilegalidades dos estabelecimentos existentes, mas passando pela própria ideia
de punição e repressão a crianças e adolescentes por meio do
aprisionamento[11]. Posteriormente, promulga-se o Código Penal de 1940, que
mantém o limite etário em 18 anos.
A história penal juvenil brasileira é marcada por
muitas permanências, e o sistema de justiça inaugurado em 1927 vai seguir por
décadas e governos marcado por ilegalidades, deficiências estruturais e descaso[12],
inobstante iniciativas governamentais de peso, como o Serviço de Assistência ao
Menor (SAM)[13] surgido na Era Vargas e a FUNABEM (Fundação Nacional do
Bem Estar do Menor), elaborada na Ditadura Militar. Além disso, em termos
jurídicos, o “pecado original”, qual seja, o tratamento da criança e do
adolescente como objetos e não como sujeitos, lhes subtraindo de seus direitos
fundamentais, se manteve e se aprimorou. Se já no Código de Menores de 1927 era
possível punir uma criança ou um adolescente sem a prática de qualquer
infração, o Código que lhe sucedeu, em 1979, agravou este quadro, consagrando
de forma plena o que se chamou de “doutrina da situação irregular”,
permitindo, na prática, as mais variadas formas de abuso e opressão à
juventude.
Ao longo dos anos 80 foram feitas intensas críticas
e denúncias à situação do tratamento juvenil no país por parte dos movimentos
sociais e da sociedade civil, acompanhando o contexto internacional à época, o
que chegou à Constituinte e se materializou em nossa Carta, nos dispositivos
protetivos da infância e juventude (arts. 227 a 229), bem como no nascimento do
Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Estes dois textos foram
responsáveis por romper com paradigma da situação irregular e as ideias tutelares,
inaugurando em nosso país a “doutrina da proteção integral”,
tratando a criança e o adolescente como sujeitos, não mais como objetos, e
garantindo-lhes seus direitos fundamentais e sua responsabilização
diferenciada, como já caminhava o tratamento juvenil internacional, o que veio
a se consolidar, dentre outros documentos, na importantíssima Convenção sobre
os Direitos da Criança (tratado com mais rápida e ampla aceitação de toda a
história), assinada e ratificada pelo Brasil em 1990.
Nesse contexto se assentou em nossa Constituição a
imputabilidade penal aos 18 anos, no art. 228 (mantendo a escolha deste limite
feita no âmbito da Reforma Penal de 1984, justificada no item 27 da Exposição
de Motivos). Os jovens abaixo desta idade submetem-se ao ECA; até 12 anos
incompletos a pessoa é reputada criança e, na prática de ato infracional
(conduta descrita como crime ou contravenção penal, art. 103) sujeita-se a
medidas de proteção previstas no art. 101; e entre 12 e 18 anos cuida-se de
adolescente, a quem se aplica medidas socioeducativas (arts. 104, 106 e 112).
Inobstante as mudanças legislativas ao longo de
nossa história, os problemas estruturais de nosso sistema penal e Justiça
Juvenil permanecem. Sabe-se das condições dos estabelecimentos de
internação[14], da precariedade no cumprimento das medidas socioeducativas
e do recrudescimento da ação punitiva do Estado, com elevação nos números de
adolescentes recolhidos e privados de liberdade e das ilegalidades
frequentemente cometidas neste sistema de justiça[15]. Mesmo assim, sempre
se defendeu o incremento da punição com vistas à defesa social e sempre se
buscou “combater a impunidade”, e tudo, sempre, em vão, independente da idade
penal da época. São demandas que se mantêm as mesmas – e a redução da
maioridade penal é uma delas -, e tudo de efetivo que se produziu foi apenas
mais sofrimento e mais pessoas encarceradas[16], além, é claro, de toda a
violência subalterna e ilegal do poder punitivo, notadamente sobre as classes
menos favorecidas.
Talvez esta breve digressão histórica de nossa
experiência penal juvenil pouco valor assuma enquanto argumento jurídico a
favor ou contra a redução da maioridade penal; mas o valor da história talvez
seja outro, mais profundo. Com Raúl Zaffaroni:
”Quando o ser humano perde a memória de seu passado, apaga sua
identidade. Irremissivelmente montados sobre a flecha do tempo, quando não
sabemos de onde viemos, ignoramos onde estamos, e, além disso, ignoramos para
onde vamos.” – Eugenio Raúl Zaffaroni, prólogo de Matrizes Ibéricas do Sistema
Penal Brasileiro – I.
No que diz respeito à redução da maioridade penal,
pelo menos do ponto de vista histórico, é uma medida que não aponta para novos
e mais emancipatórios caminhos em matéria de infância e juventude; ao
contrário, seu horizonte se apresenta bastante perturbador, obscurecido pelas
sombras de tempos passados que insistem em não nos abandonar.
Hamilton Ferraz é mestrando em Direito Penal pela Faculdade
de Direito da Uerj e Advogado.
[1] Nesse sentido, dentre vários, conferir Túlio
Vianna, http://www.estadao.com.br/noticias/geral,maioridade-seletiva,1023450;
Bruno Paes Manso,
http://justificando.com/2014/10/15/reducao-da-maioridade-penal-e-estelionato-eleitoral/;
Frei Betto, http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/04/todos-os-paises-que-reduziram-maioridade-penal-nao-diminuiram-violencia.html;
e, pela redução da maioridade penal, Marcelo Fernandes dos Santos,
https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/1194/A%20redu%C3%A7%C3%A3o%20da%20maioridade%20penal%20extra%C3%ADda%20do%20ordenamento%20legal%20brasileiro.pdf?sequence=1
[2] http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/ccjc/noticias/debate-sobre-reducao-da-maioridade-penal-domina-reuniao-da-ccjc
[3] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil. 2ª
Ed. Rev. e Atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 28.
[4] Idem, p. 30, e, por uma história da prisão no
Brasil, conferir MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva:
nascimento da prisão no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
[5] DEL PRIORE, Mary. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
1991, 2013; SPOSATO, Karyna Batista. O direito penal juvenil.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
[6] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança
pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, pp.
39 a 43.
[8] DEL PRIORE, 2013, p. 224; RIZZINI, Irma., O Surgimento das instituições especializadas na internação de
menores delinquentes. In. ZAMORA, Maria Helena (org.). Para além das grades: elementos para a transformação do
sistema socioeducativo. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2005.
[10] BARRETO, Tobias. Menores e loucos. Edição do Estado de Sergipe, 1926,
pp. 16 e 17. Importa mencionar que o mesmo autor aborda também a própria
necessidade de um patamar penal etário, justificando esta escolha basicamente
na ideia de segurança jurídica (Idem, p. 14 e 15) – o que, novamente, é
ignorado pelos defensores da redução da maioridade penal.
[12] É chocante o relato do primeiro processo
julgado pelo juiz Mello Mattos, no qual ele sentencia que, “como não existe estabelecimento próprio para menores delinquentes,
permaneça o réu na Seção Especial da Casa de Detenção em que se acha”
(BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis.
Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca
de Criminologia: Freitas Bastos, 1998, p. 61).
[13] O SAM entrou em um colapso tão profundo que o
próprio STF, na pena do então Min. Nélson Hungria, chegou a conceder liberdade
a um jovem que nele seria internado, num dos julgamentos mais marcantes de sua
história (HC 38.193/GB, de 1961, relativo ao caso Ainda Curi). Aliás, importa
mencionar que o SAM chegou a ser popularmente apelidado como “Sem Amor ao
Menor” (RIZZINI, Irma; PILLOTI, Francisco, 2011, p. 266).
[14] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/03/relatorio-revela-rotina-de-violencia-e-divisao-de-faccoes-no-degase-rj.html
[15] Em maiores detalhes, sugere-se a leitura
seguinte
<http://justificando.com/2014/11/10/os-arrastoes-centro-rio-por-analises-menos-superficiais/>.
[16] Para a atual situação de nosso sistema penal,
conferir
<http://justificando.com/2014/11/28/o-barato-que-sai-caro-o-sistema-penal-brasileiro-em-numeros/>.
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